Ao Cadáver

Nossa jornada se iniciou com você ali, inerte sobre a maca com um lençol branco envolvendo seu corpo. Em sua face vimos a expressão dos anos vividos — com sua pele pálida e sem brilho, seus lábios tristes, seu peito imóvel e aberto. Ofereceu seu coração para quem nunca soube seus sentimentos. Expôs seu cérebro para quem nunca soube seus pensamentos. Ofereceu suas mãos e pés para quem jamais soube o peso que carregaram e os caminhos que percorreram. Vida que se aprende com a morte. Morte que ironiza a vida. Ironiza o corpo que está aqui, corpo que não se decompõe, graças ao formol, inimigo dos vermes. Pobre cadáver que nunca se deteriora, nunca volta ao pó, não tem sossego, não tem paz. Mergulhado ali, com tantos outros anônimos sempre à nossa disposição. Em seu último momento nos deu a grandiosidade do ensinamento. Expôs seu corpo às nossas mãos sem nada perguntar. Fez-se mestre. Seja qual for a sua história, você se tornou parte da nossa. Foi mais que muitos, porque teve o poder de ensinar em silêncio, doando sua morte em benefício de outras vidas. A você, cadáver, nosso eterno respeito e gratidão!