Ao cadáver

“Acorda, estudante! Estás tão absorto… Afinal, aqui dentro, qual de nós é o morto? Calma! Não te assustes, sou eu quem te fala. Mesmo porque só restamos nós dois nesta sala! Pega aí o teu banquinho, acomoda-te aqui… Põe de lado estas pinças, guarda o teu bisturi! Fica bem à vontade, bate um papo comigo. Pois, já que estudas em mim, quero ser teu amigo! (…) Eu me lembro, no início, eras tão sonhador… Tu te chegavas, me estudavas com tanto fervor que eu pensava comigo: “este aí tem valor”. (…) Mas, depois, tuas visitas foram rareando. Tu me olhavas de lado, ias te esquivando, e, nos dias de aula, quando as manhãs iam altas, na presença de todos eu sentia tua falta. (…) Mas escuta, menino, dá a volta por cima, vê quanta beleza tem esta Medicina! Estas coisas de agora são ossos do ofício, valoriza a vitória, o maior sacrifício. Toma em mim um exemplo, meu irmão querido, retrocede no tempo, que há de me dar razão. Imagina, eu vivo e tu já formado, tendo a oportunidade de me curar. E a gente batendo este papo em total alegria, sem que eu estivesse deitado nesta pedra fria. Êpa! Que é que eu estou vendo? Estás chorando, garoto? Vamos enxugar o pranto deste rosto maroto. Levanta a cabeça e me dá um sorriso, reage com raça que isto é preciso, vai lá fora e te cobre com raios de sol… Se te virem chorando, diz que foi o formol”.

(Autor desconhecido)